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A taxa de fluidos IV ou tonicidade contribuem para a taxa de edema cerebral na cetoacidose diabética em crianças?

Algumas crianças com cetoacidose diabética evoluem com edema cerebral e tem péssimas sequelas neurológicas. Infelizmente, quando isso ocorre, frequentemente se aponta o dedo para o médico emergencista devido ao nosso zelo exacerbado com o uso de fluidos intravenosos. Crianças não são adultos em miniatura, sempre escutamos, e não toleram os mesmos volumes de fluidos. Ou talvez, seja o uso de soluções hipotônicas. De qualquer forma, nos é dada a forte recomendação de evitar o uso “agressivo” de soluções intravenosas, e evitar fluidos hipotônicos. (TREKK 2014; Dunger 2004). Contudo, a base de evidências para essas recomendações é muito fraca, baseando-se inteiramente em dados observacionais. (Hom 2008) Esses dados observacionais indicam uma associação, mas não se traduzem necessariamente à causa. Primeiramente, crianças recebendo mais volume tendem a ser mais doentes e mais propensas ao desenvolvimento de edema cerebral, o que significa que a associação com reposição volêmica pode estar baseada completamente em um confounding (confundidor). Um estudo de caso controle feito em 2001 não encontrou associação com volume de fluido utilizado, mas sim com acidose e insuficiência renal (marcadores de severidade da doença). (Glaser 2001) Até hoje, houve muitas suposições, mas não muitas respostas. Finalmente, temos um grande estudo randomizado para guiar nosso manejo… 

O Artigo

Kuppermann N, Ghetti S, Schunk JE, et al. Clinical Trial of Fluid Infusion Rates for Pediatric Diabetic Ketoacidosis. The New England Journal of Medicine. 2018; 378(24):2275-2287. PMID: 29897851

Os Métodos

Esse é um trabalho randomizado multicêntrico, com um design 2×2.

Pacientes:  Crianças (0-18 anos) com diagnostico de CAD (glicose >300mg/dL ou 16.7mmol/L e um pH<7.25 ou bicarbonato<15mmol/L).

  • Exclusões: problemas que podiam afetar o estado mental ou teste neurocognitivo, uso de álcool ou narcóticos concomitante, trauma de cabeça, gravidez, fatores que os médicos determinaram que uma terapia específica com fluido e eletrólitos era necessária. Depois do segundo ano do estudo, pacientes com um escore de Glasgow menor que 11 foram excluídos.

Grupos:

  • Reidratação rápida com 0.45% de cloreto de sódio
  • Reidratação rápida com 0.9% de cloreto de sódio
  • Reidratação lenta com 0.45% de cloreto de sódio
  • Reidratação lenta com 0.9% de cloreto de sódio

Reidratação Rápida assumiu um déficit de fluido de 10% do peso do paciente. Foi dado um bolus inicial de 10mL/kg, seguido de um de 10mL/kg caso o médico julgasse necessário, e depois uma infusão de metade do déficit restante (mais a manutenção) nas 12 horas seguintes. O restante do déficit foi reposto em 36 horas.

Reidratação Lenta assumiu um déficit de 5% do peso do paciente. Um bolus inicial de 10mL/kg foi dado, mas sem bolus adicional. O restante do déficit foi reposto em mais de 48 horas.

Desfecho

O desfecho primário foi deterioração do estado neurológico nas primeiras 24 horas.

  • Desfechos secundários incluíram: memória de curto prazo durante o tratamento da cetoacidose diabética, dano cerebral clinicamente aparente, e memória de curto prazo, memória contextual, e QI 2 a 6 meses depois do episódio de CAD.

Todos os centros são localizados nos Estados Unidos. Tirando a quantidade de ressuscitação hídrica, todos os pacientes receberam o mesmo tratamento, seguindo um protocolo de tratamento de CAD padrão.

Os Resultados

            1255 crianças foram randomizadas, mas uma vez que 132 tiveram 2 episódios de cetoacidose diabética, 1389 episódios de CAD foram avaliados.

Não houve diferença entre os grupos em termos de diminuição da função neurológica. A taxa total de diminuição da função cerebral abaixo de um Glasgow de 14 foi 3.5% com 1.6% sendo tratados com terapia hiperosmolar e 0.9% tendo dano cerebral clinicamente aparente.

Nenhum dos desfechos secundários se mostrou com diferenças estatisticamente relevantes. As estimativas, na verdade, mostram piores resultados no grupo em que houve reidratação lenta, mas nenhuma dessas diferenças foi significativa.

Houve violações de protocolo em 8% dos dois grupos, mas análise por protocolo também não encontrou diferença alguma.

Minha Opinião

            Este é, claramente, o melhor estudo que temos nesse assunto até hoje, mas infelizmente nenhum estudo é perfeito. Ambos os grupos nesse estudo, na verdade, receberam ressuscitação hídrica relativamente conservadora, porque é este o padrão na abordagem pediátrica. Não é claro como os resultado se comparariam ao bolus de 20-30mL/kg que frequentemente usamos no manejo adulto. Pessoalmente, eu duvido que um bolus maior seja prejudicial, mas nós devemos ter cautela com as interpretações desse estudo. Ele não quer dizer que podemos começar a encharcar as crianças com fluidos IV.

Acho que o critério de inclusão não foi bom. Tenho um grande problema com qualquer estudo pediátrico que avalie juntos pacientes de 17 anos e 6 meses de idade. Quando se está falando de edema cerebral, é com as crianças mais jovens que estamos mais preocupados. Colocar eles juntos com pacientes que são essencialmente adultos não faz muito sentido, e pode mascarar diferenças importantes em pacientes mais novos.

Os resultados aqui poderiam também ser afetados por um viés de seleção. Pacientes foram excluídos quando os médicos que os atenderam consideraram “que uma terapia específica com fluido e eletrólitos era necessária”. 289 crianças (por volta de 10% da população do estudo) foram excluídas por esse motivo.

Finalmente, embora seja um estudo incrivelmente amplo (considerando esse tópico), houve somente 12 pacientes com lesão cerebral clinicamente aparente. Logo, isso nos dá um amplo intervalo de confiança.

Antes desse estudo, achei que era provavelmente um mito que a escolha pela ressuscitação hídrica impactasse a incidência de edema cerebral em pacientes pediátricos com cetoacidose diabética. O estudo parece dar suporte a essa hipótese. (Eu tento estar ciente de como minhas opiniões podem influenciar minhas avaliações críticas, mas todos nós temos um preconceito do qual não podemos escapar). Por fim, os desfechos parecem muito semelhantes não importando em qual grupo você foi incluído. Esse estudo não prova que alguém está errado. Não significa que, caso esteja utilizando uma estratégia de reposição hídrica IV bem restritiva, você deva mudar sua prática. Mas espero que faça parar a grande quantidade de críticas dogmáticas sobre as escolhas de ressuscitação hídrica dos médicos emergencistas que eu tenho visto ao longo dos anos.

Resumindo

            Hoje, este é o estudo definitivo nesse tópico. Não parece que a escolha dos fluidos impacta na ocorrência de edema cerebral ou dano cerebral em pacientes pediátricos com cetoacidose diabética.

Texto Original: First10em

Tradução: Mateus Araujo

Autor: Justin Morgenstern

Revisado por: Arthur Martins

REFERÊNCIAS

  1. Dunger DB, Sperling MA, Acerini CL, Bohn DJ, Daneman D, Danne TP, et al. European Society for Paediatric Endocrinology/Lawson Wilkins Pediatric Endocrine Society consensus statement on diabetic ketoacidosis in children and adolescents. Pediatrics. 2004 Feb;113(2):e133–40. [PubMed]
  2. Glaser N, Barnett P, McCaslin I, et al. Risk Factors for Cerebral Edema in Children with Diabetic Ketoacidosis N Engl J Med. 2001; 344(4):264-269.
  3. Hom J, Sinert R. Evidence-based emergency medicine/critically appraised topic. Is fluid therapy associated with cerebral edema in children with diabetic ketoacidosis? Annals of emergency medicine. 2008; 52(1):69-75.e1. [PubMed]
  4. (2014). Bottom Line Recommendations: Diabetic Ketoacidosis.