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Escrito por Zaf Qasim

O gerenciamento das vias aéreas como a primeira prioridade tem sido a espinha dorsal da ressuscitação há anos. “Aborde A primeiro, antes de passar para B e C”, é o que aprendemos e o que ensinamos a sucessivas gerações de alunos. Para equipes clínicas adequadamente treinadas, tanto intra ou pré-hospitalares, a conclusão de “A” pode muito bem significar realizar uma intubação em sequência rápida (ISR).

Desde o seu início, na década de 1970, houve uma evolução contínua na maneira como abordamos a ISR (e o gerenciamento das vias aéreas em geral) no paciente fisiologicamente em risco – este post irá se concentrar no paciente traumatizado. Você poderá revisar alguns blogs e podcasts muito bem elaborados nos últimos anos que destacaram várias abordagens para evitar problemas de peri e pós intubação.

Como na parada cardíaca.

Imagine este caso – um jovem é baleado múltiplas vezes no abdômen e levado às pressas para o centro de atendimento ao trauma onde você trabalha. Seus sinais vitais iniciais mostram que ele está taquicárdico, com pressão arterial sistólica (PAS) de 64 mmHg. Ele está diaforético e severamente alterado. O líder da equipe pede para você intubar. Sua enfermeira administra os medicamentos que você solicitou assim que o acesso EV é estabelecido e você prossegue com uma intubação “fácil”. As vias aéreas estão boas! No minuto seguinte, porém, a equipe percebe que o monitor mostra uma freqüência cardíaca de 138 – mas o paciente não tem pulsos nem pressão arterial detectável?

A ressuscitação continua, é realizada a toracotomia – não há nada para ser abordado. O coração parece vazio, o volume é infundido e, eventualmente, o paciente retorna ao equilíbrio hemodinâmico.

É um negócio arriscado

Existem pacientes traumatizados que estão esgotando, ou perto de esgotar, suas reservas fisiológicas – hipovolêmicos, acidóticos e lutando com dificuldades para compensar. Eles apresentam hemorragias exsanguinantes e/ou têm uma patologia obstrutiva importante (como pneumotórax por tensão ou tamponamento) e correm um risco muito alto de parada cardiorrespiratória de etiologia traumática em decorrência dessas condições.

Historicamente, tem havido preocupação de que, ao expor esses pacientes profundamente chocados à intubação em sequência rápida mal planejada e subsequente ventilação com pressão positiva, podemos causar mais danos do que benefícios.

Os medicamentos sedativos utilizados para induzir a anestesia e para facilitar a intubação têm todos os riscos inerentes de causar hipotensão – isso é agravado em caso de estado de choque hemorrágico, com risco de parada cardíaca. Os bloqueadores neuromusculares, embora muitas vezes sejam necessários para otimizar as condições de intubação, fazem com que o paciente fique apneico. Eles perdem a compensação da acidose metabólica grave até que sejam novamente ventilados, piorando a acidose e levando ao risco de parada cardíaca. Da mesma forma, o risco ocorre pela realização de várias tentativas de intubação pois aumentam o risco de hipoxemia. Por fim, a adição de ventilação com pressão positiva reduz o retorno venoso já comprometido (e consequentemente o débito cardíaco) ao coração, arriscando uma parada.

Devemos considerar a reordenação da nossa abordagem à ressuscitação no paciente com trauma grave, identificando ameaças fisiológicas evidentes e ocultas antes de prosseguir com a intubação. Quando surgir a necessidade de intubação, precisamos otimizar nossa estratégia para garantir o sucesso da primeira abordagem e causar mínimo insulto hemodinâmico.

Traga a Nova Ordem!

Se algo de bom resultou dos recentes conflitos militares, é o avanço na abordagem do atendimento ao trauma. Aprendemos o benefício dos torniquetes e da transfusão de sangue total aplicando ou estudando-os na prática civil.

Outro ponto importante a ser levado em consideração deve ser o reordenação de nossa abordagem à ressuscitação. Os pacientes verdadeiramente exsanguinantes provavelmente irão parar se você tentar intubá-los primeiro. Uma das lesões prototípicas da guerra foi a realização da amputação traumática levando à exsanguinação maciça. Com o tempo, o manejo destes pacientes mudou e eles passaram a receber um torniquete de extremidade antes da abordagem definitiva das vias aéreas.

Isso logicamente leva à reordenação da ressuscitação, mudando o foco inicial das vias aéreas para gerenciar um risco maior como esse. O mnemônico ABC pode ser alterado para C-CAB (do inglês: Catastrophic hemorrhage; Circulation; Airway; Breathing, ou hemorragia catastrófica; circulação; vias aéreas; respiração) ou MARCH (do inglês: Massive hemorrhage; Airway; Respiration; Circulation; Head/Hypothermia ou  hemorragia maciça; vias aéreas; respiração; circulação/cabeça; hipotermia).

Em outras palavras, bem antes de executar uma manobra avançada das vias aéreas, controle a hemorragia grave e comece a repor o volume perdido (idealmente com o que está sendo perdido – sangue). Dependendo da situação, você pode aplicar um torniquete na extremidade, fazer tampão com gaze hemostática, amarrar a pelve ou manter pressão direta. Nos centros que a possuem, a técnica de oclusão ressuscitativa por meio de balão endovascular da aorta (REBOA) pode ser apropriada como um “torniquete interno” para uma hemorragia torácica não compressível.

Os mnemônicos podem ser modificados ainda mais para incluir a identificação e o tratamento de uma ameaça de vida catastrófica ou maior, acrescentando outro C ou M. Isso se refere especificamente a uma patologia obstrutiva importante, como um pneumotórax hipertensivo.

Paralelamente, você deve obter acesso intravenoso de grande calibre ou intraósseo, administrar o que se está perdendo – sangue – e manejar as vias aéreas com manobras básicas de vias aéreas. Este último pode incluir manobras de abertura, como a protrusão da mandíbula, aplicação de oxigênio da máscara facial, uso de adjuvantes como uma via aérea orofaríngea e, se necessário, uso de ventilação com bolsa válvula máscara (BVM) adequadamente aplicada.

“Bem, eu não esperava isso!”

Nos minutos iniciais da ressuscitação, às vezes é óbvio que o paciente está exsanguinando – você só precisa olhar para o sangue acumulado na maca e pingando no chão.

Outras vezes, pode ser muito desafiador decifrar se é esse o caso. Novamente, a intubação precoce sem ressuscitação nesses estados de hipovolemia ou diminuição do retorno venoso provavelmente levará a um resultado ruim. Por isso, é fundamental identificar precocemente as ameaças fisiológicas encobertas.

Pistas podem ser obtidas a partir dos sinais vitais iniciais no pré ou intra hospitalar. Uma pressão arterial sistólica menor que 90 mmHg (mesmo em um momento isolado) pode estar associada a uma mortalidade significativa no paciente traumatizado. O uso da pressão arterial com a freqüência cardíaca para calcular um índice de choque (freqüência cardíaca / pressão arterial sistólica) também pode ser útil. Normalmente, deve estar entre 0,5 e 0,7. Quando o valor excede 0,9, a probabilidade de parada cardíaca pós-intubação aumenta.

Existem exceções: se o paciente for idoso, estiver tomando medicamentos que podem alterar a freqüência cardíaca e a pressão arterial, ou apresentar um grande insulto neurológico (lesão da medula espinhal ou lesão cerebral traumática grave), esses números podem ser menos confiáveis. Um paciente que normalmente tem uma pressão sistólica de 170 mmHg ficará hipotenso com um valor “normal”.

O uso de um índice “delta-shock” nesses casos pode ser mais útil. Ele calcula a diferença no índice de choque em dois pontos no tempo (por exemplo, no atendimento pré-hospitalar e na chegada do hospital ou duas leituras sucessivas no hospital). Uma diferença > 0,1 pode indicar maior mortalidade ou necessidade de transfusão de produtos sanguíneos.

Por exemplo, um pedestre idoso é atropelado por um carro. Sua história passada inclui hipertensão, para a qual ele toma metoprolol e lisinopril. Seus sinais vitais iniciais são: freqüência cardíaca de 85 batimentos por minuto e uma pressão arterial sistólica de 125 mmHg. Isso pode parecer tranquilizador, embora seja importante ter em mente que a pressão sistólica basal pode ser de 140 mmHg. O índice de choque aqui é 0,68 – novamente, é aparentemente reconfortante. Nos cinco minutos seguintes, seus sinais vitais mudam para uma frequência cardíaca de 89 e uma sistólica de 110 mmHg. Aparentemente não é preocupante à primeira vista, mas agora seu índice de choque é 0,81 e seu índice delta-choque (0,81-0,68) é 0,13. Na verdade, esse paciente está em risco significativo de declínio, mas isso foi mascarado por sua comorbidade subjacente e pelos medicamentos usados ​​por ele.

Os dados iniciais do laboratório no ponto de atendimento à beira do leito também podem ser um forte preditor de mortalidade. O ácido lático elevado e/ou um alto déficit basal (> 6 mEq / L) são reconhecidos como indicativos de mau prognóstico e devem ser abordados de forma agressiva. A tendência dessas variáveis ​​pode ser útil para identificar deterioração clínica ou resposta à ressuscitação.

E os sinais clínicos imediatos? Estes podem ser tudo o que está disponível em um paciente que se deteriora rapidamente. A informação pré-hospitalar é crucial e geralmente é o primeiro indicador de gravidade do distúrbio fisiológico. A presença ou ausência de pulsos centrais, embora varie em confiabilidade, também pode ser usada. Meu amigo da Ambulância Aérea de Londres, Dr. Gareth Davies, descreve uma constelação de sinais e sintomas que identificam o paciente verdadeiramente exsanguinante que ele chama de “oito odiados” – são eles:

  • Palidez
  • Diaforese
  • Confusão
  • Dispneia
  • Bradi ou taquicardia
  • Hipotensão
  • CO2 expirado final baixo ou em queda
  • Veias colapsadas

Quando a exsanguinação não é imediatamente aparente, uma combinação desses fatores pode ser utilizada para identificar uma ameaça fisiológica iminente, embora possivelmente encoberta. Isso deve levar a um esforço conjunto para identificar e tratar a causa antes de correr para intervenções avançadas nas vias aéreas.

Às vezes, você só precisa intubar

Na maioria dos pacientes com trauma grave, a intubação não é necessária imediatamente na chegada do paciente. Há algum tempo para tentar identificar a presença de uma ameaça fisiológica e iniciar a ressuscitação. Manobras básicas das vias aéreas, conforme descrito acima, podem ser usadas para apoiar as vias aéreas enquanto isso é feito e, em seguida, um plano pode ser feito para prosseguir para a intubação.

A primeira decisão precisa ser “eu intubar no pronto-socorro ou na sala de cirurgia?” Eu argumentaria que na presença de algumas patologias (por exemplo, hemorragia torácica grave não compressível e tamponamento pericárdico) seria mais prudente continuar para apoiar as ventilações espontâneas do paciente, agilizar o transporte para a sala de operações e intubar lá, onde agora há acesso imediato às ferramentas necessárias para fornecer cuidados definitivos.

Em outros casos, é aconselhável proteger as vias aéreas rapidamente no pronto socorro. Isso inclui lesões graves (geralmente vasculares) lesões no sistema nervoso central, rosto ou pescoço que provavelmente irão piorar rapidamente; queimaduras graves nas vias aéreas; e piora da hipóxia apesar das manobras básicas das vias aéreas. Embora a identificação e o gerenciamento de outras ameaças fisiológicas ocorram paralelamente, há algumas coisas que você pode fazer para otimizar sua intubação e ventilação para minimizar o risco de descompensação.

Recomenda-se a padronização da intubação durante o cenário de uma ameaça fisiológica contínua. Deve-se enfatizar a seleção apropriada de medicamentos e a dosagem ideal. Essa abordagem padronizada permite que todos compartilhem um modelo mental e minimiza o risco de erros. Essa padronização pode incorporar o uso de uma lista de verificação e também pode reforçar outras intervenções para maximizar a chance de sucesso na primeira passagem, como o posicionamento do paciente. Revisamos e atualizamos recentemente nosso próprio protocolo de ISR para refletir sobre esses fatores.

Embora o medicamento ideal para intubação não exista, é extremamente importante obter a dose certa, independentemente do agente escolhido. Onde eu treinei em Baltimore, o propofol foi o medicamento de escolha, pois estava disponível rapidamente, sem a necessidade de verificações adicionais com substâncias controladas. No entanto, as doses utilizadas foram tituladas aos valores fisiológicos para minimizar o risco de parada pós-intubação. É importante ressaltar (antes que todos busquem o propofol), o grupo de médicos de lá era composto por especialistas no uso desse medicamento nos estados de choque.

Escolhemos a cetamina para o protocolo no meu serviço atual. A cetamina possui um perfil relativamente favorável hemodinamicamente. No entanto, como esse estudo pré-hospitalar mostrou, mesmo a indução com cetamina ainda tem potencial para causar hipotensão, principalmente naqueles com alto índice de choque. Portanto, em nosso protocolo, enfatizamos o uso de uma dose muito mais baixa (0,5mg / kg) em pacientes com ameaças fisiológicas evidentes ou ocultas. O mesmo argumento do ajuste da dose deve ser feito se um agente alternativo for escolhido para indução. Por exemplo, se você escolher etomidato, poderá reduzir a dose para 0,15 mg / kg ou menos.

Não existem dados suficientes para apoiar o papel dos vasopressores no choque hemorrágico – no entanto, o uso destes em bolus ou em “dose push” pode ser uma ponte para a conclusão da ressuscitação e intubação.

Lembre-se de que a transição da ventilação negativa para a pressão positiva altera a dinâmica torácica e, por extensão, a pré-carga e a pós-carga do ventrículo direito, predispondo à parada cardíaca no paciente com trauma fisiologicamente ameaçado. Depois que uma intubação necessária ocorrer nesses pacientes críticos, sua estratégia de ventilação também deve ser otimizada. Pode ser razoável permitir a preservação da ventilação espontânea utilizando um agente paralítico de ação curta durante o seu ISR ou ajustando sua ventilação minuto para para compensar a acidose metabólica, se for necessária paralisia contínua. Lembre-se de ter cuidado no paciente com uma lesão cerebral traumática grave para evitar hipocapnia. Além disso, minimize a quantidade de pressão expiratória final positiva (PEEP) administrada – a PEEP excessiva diminuirá ainda mais o retorno venoso.

A palavra final

Precisamos entender que o que fazemos, apesar de nossas melhores intenções, podemos induzir danos se errarmos. Devemos continuar a evoluir nossa abordagem para as vias aéreas desafiadoras, e isso inclui o paciente gravemente ferido. Prestando atenção à ordem da ressuscitação, sinais e sintomas encobertos de choque e à otimização de nossa estratégia de intubação e ventilação, podemos minimizar qualquer lesão secundária em nossos pacientes.

 

Original: REBEL EM –  First Do No Harm: Rethinking our Approach to Intubation In Trauma

Tradução: Fernanda

Revisão: Mateus Araujo