Nesse post direto da Mayo Clinic Emergency Medicine você acompanha uma simulação de discussão de caso entre um residente de Medicina de Emergência e o Dr. Bongartz, Chefe do Setor de Artrites Inflamatórias do Departamento de Reumatologia da Mayo Clinic, Rochester.
Escrito por Tim Bongartz, MD
Postado originalmente por Daniel Cabrera, MD
Traduzido por Lucas Oliveira Junqueira e Silva
Tradução revisada por Henrique Puls
Cenário:
Um homem de 54 anos chega à Emergência com dor forte no pé e tornozelo direito, associado a edema local. O caso é visto por um dos residentes da Medicina de Emergência e discutido com o Dr. Bongartz, Chefe do Setor de Artrites Inflamatórias do Departamento de Reumatologia da Mayo Clinic, Rochester.
História:
O paciente relata que a dor no pé teve início súbito. Ele foi deitar se sentindo bem, porém acordou em torno das 02:00 da madrugada com uma dor excruciante na região da 1ª metatarso-falangeana do pé direito. Refere também vermelhidão e edema significativo, que rapidamente se espalhou para seu tornozelo. À chegada, sua dor era 10/10 e não tolerava qualquer toque na região, devido à hipersensibilidade dolorosa da área. Ele nega qualquer outra queixa associada e nega envolvimento de outras articulações.
Pergunta do Residente: Existem outras doenças que podem se apresentar com dor articular não traumática? Qual deve ser meu papel como Emergencista nesse caso?
Resposta do Dr. Bongartz: Como em qualquer outra situação, o objetivo inicial de se avaliar um paciente na Sala de Emergência é identificar as condições que possam oferecer morbidade significativa ao paciente ou mortalidade caso não seja tomada alguma conduta imediata.
Nos pacientes com mono ou oligoartrite aguda, identificar e tratar os pacientes com artrite séptica é a tarefa mais importante para o Emergencista. Uma infecção aguda articular está associada com uma morbimortalidade elevada, e a rápida intervenção com antibioticoterapia e drenagem da articulação pode salvar não só a funcionalidade dessa, mas também a vida do paciente. Depois de tomada a conduta inicial, o objetivo é oferecer alívio da dor ao paciente, lembrando que a estratégia pode variar de acordo com a causa da inflamação articular.
Para o nosso paciente, devemos utilizar a informação clínica, achados do exame físico e testes laboratoriais para esclarecer se ele precisa ser tratado para artrite séptica ou pode ser manejado como um paciente ambulatorial por uma etiologia alternativa de artrite aguda.
História Médica Pregressa:
- Diabetes;
- Hiperlipidemia;
- Hipertensão;
- “Problemas renais” (última creatinina sérica de 1.8 mg/dL).
Medicações em uso:
- Atorvastatina;
- Hidroclorotiazida;
- Metformina;
- Lisinopril.
Sinais Vitais:
- FC: 110 bpm;
- PA: 165/110 mmHg;
- Altura: 176cm;
- Peso: 114kg.
Pergunta do Residente: Me parece que esse paciente é tipicamente um “paciente gotoso” com síndrome metabólica e diversos fatores de risco para Gota. Precisamos pedir algo a mais para ele?
Resposta do Dr. Bongartz: Nosso paciente, de fato, está sob alto risco para Gota. Ele possui diversos fatores de risco que estão associados com uma probabilidade alta de Artrite Gotosa:
Fatores de Risco para Gota
Fator de Risco | RR* Ajustado |
Sexo Masculino | 7.7 |
Uso de Diurético | 1.7 |
Obesidade | 3.8 |
Hipertensão | 3.9 |
Doença Arterial Coronariana | 1.8 |
Diabetes Mellitus | 1.1 |
Insuficiência Renal Crônica | 4.9 |
*RR: risco relativo ajustado.
Fonte: Zhang W et al.: EULAR evidence based recommendations for gout. Part I: Diagnosis. Ann Rheum Dis. 2006
Entretanto, preditores como diabetes mellitus, além de oferecerem risco para Gota, também estão associados a um risco para Artrite Séptica. Dada a morbimortalidade elevada associada a essa condição quando não tratada, precisamos de uma probabilidade diagnóstica negativa muito alta antes de nos focarmos em uma etiologia não-séptica. Na maioria dos casos, só a história do paciente não é suficiente para alcançarmos o nível desejado de certeza diagnóstica.
Fatores de Risco para Artrite Séptica
Fator de Risco | RR Ajustado |
Diabetes Mellitus | 4.1 |
Artrite Reumatóide | 2.8 |
Cirurgia recente da articulação | 6.9 |
Infecção de Pele | 3.6 |
*RR: risco relativo ajustado.
Fonte: Margaretten ME et al.: ” Does this adult patient have septic arthritis?” JAMA. 2007
Pergunta do Residente: Existem questões adicionais que eu possa fazer ao paciente para alcançar um nível maior de certeza diagnóstica?
Resposta do Dr. Bongartz: É muito importante perguntar ao paciente explicitamente sobre qualquer diagnóstico prévio de doença articular e/ou crises de artrite inflamatória prévia. Algumas vezes, esse esforço adicional para aumentar a certeza diagnóstica pode não ser necessário, caso o paciente possua uma doença bem estabelecida e esteja tendo uma crise muito similar às anteriores. Entretanto, devemos tomar algumas precauções: pacientes com doença articular pré-existente estão sob elevado risco de ter artrite séptica, e qualquer desvio do padrão usual das crises deve aumentar o índice de suspeição para uma possível artrite séptica.
Exame Físico:
Geral: sexo masculino, branco, obeso, dor aguda.
Pele: pé direito com eritema “brilhante”.
Musculoesquelético: dor importante à palpação superficial no dorso do pé direito, na altura da 1ª metatarso-falangeana e no tornozelo, associado à edema, eritema e calor local. Flexão plantar e dorsiflexão limitadas.
Vascular: perfusão distal adequada com enchimento capilar rápido. Pulso pedioso não palpável devido ao edema.
Pergunta do Residente: Posso usar algum achado do exame físico para incluir ou descartar Artrite Séptica do meu diagnóstico?
Resposta do Dr. Bongartz: Os achados do exame físico são de utilidade limitada para o diagnóstico diferencial entre artrite séptica e não-séptica: dor forte, eritema, calor e edema são achados universais e comuns a ambos. Caso os sintomas sejam limitados à região da primeira metatarso-falangeana (Podagra), a causa subjacente provavelmente não é infecciosa. Embora a presença de “tofo” seja um achado bem específico para pacientes com artrite gotosa, precisamos tomar algumas precauções: (1) esses dados são derivados de coortes ambulatoriais e podem não ser válidos para pacientes que se apresentam no serviço de Emergência; (2) mesmo que pacientes com “tofo” tenham, sem dúvida, gota crônica, isso não exclui uma etiologia séptica para aquela artrite aguda que o levou para a emergência.
Sensibilidade, Especificidade e Likelihood Ratio para Gota
Achado Clínico | Sensibilidade (95% CI) | Especificidade(95% CI) | LR* (95%) |
Articulação dolorosa e edemaciada de início abrupto (dor dentro de 6-12h) | 0.98 (0.95 até 1.02) | 0.23 (0.10 até 0.35) | 1.27 (1.08 até 1.50) |
Eritema | 0.92 (0.88 até 0.96) | 0.62 (0.58 até 0.66) | 2.44 (2.19 até 2.73) |
Podagra | 0.96 (0.91 até 1.01) | 0.97 (0.96 até 0.98) | 30.64 (20.51 até 45.77) |
“Tofo” definido | 0.30 (0.24 até 0.36) | 0.99 (0.99 até 1.00) | 39.95 (21.06 até 75.79) |
*LR: Likelihood Ratio (Razão de Verossimilhança)
Fonte: Zhang W et al.: EULAR evidence based recommendations for gout. Part I: Diagnosis. Ann Rheum Dis. 2006
No nosso paciente, o exame físico somente confirmou a presença de artrite metatarso-falangeana e tibiotalar, porém são achados insuficientes para diferenciar entre uma etiologia séptica e outra não-séptica.
Pergunta do Residente: Mas o nosso paciente está afebril. Isso não falaria contra o diagnóstico de Artrite Séptica?
Resposta do Dr. Bongartz: Não. Há um equívoco muito comum que diz que a ausência de febre torna um diagnóstico de Artrite Séptica improvável. Entretanto, é o oposto que é verdadeiro: a maioria dos pacientes com cultura confirmada e Artrite Séptica são afebris, e a probabilidade para artrite séptica é, na verdade, baixa quando a febre está presente (LR para artrite séptica caso o paciente esteja febril é de 0.67) (Margaretten ME et al.: “Does this adult patient have septic arthritis?” JAMA. 2007).
Pergunta do Residente: E o que dizer sobre a coleta de sangue? Não devemos esperar uma contagem de leucócitos elevada na Artrite Séptica? Ou o nível sérico de ácido úrico elevado na artrite gotosa?
Resposta do Dr. Bongartz: Em um contexto agudo, os testes laboratoriais são de valor limitado. A contagem de leucócitos não é um teste útil para distinguir entre Artrite Séptica e não-séptica. Na metade dos casos de Artrite Séptica, os leucócitos estão dentro do limite normal (Li et al., Acad Emerg Med. 2004).
O nível sérico de ácido úrico também tem suas limitações. Durante a crise de artrite gotosa aguda, o nível sérico de ácido úrico é frequentemente dentro dos limites normais. Portanto, a sensibilidade de um nível alto de ácido úrico para o diagnóstico de gota num contexto agudo é baixa. (Zhang W et al.: EULAR evidence based recommendations for gout. Part I: Diagnosis. Ann Rheum Dis. 2006).
Pergunta do Residente: Já que os exames laboratoriais não são úteis, o que mais eu posso fazer para alcançar um nível de certeza diagnóstica maior e finalmente tomar a decisão do tratamento?
Resposta do Dr. Bongartz: A chave diagnóstica para avaliar pacientes com mono ou oligoartrite aguda não-traumática é a artrocentese (aspiração da articulação), com posterior análise do líquido sinovial para cristais, celularidade e estudos microbianos (coloração de Gram e culturas).
Resultados da Artrocentese da Articulação Tibiotalar (Tornozelo):
Celularidade: 38.000/mcl;
Análise de Cristais: cristais intracelulares de urato monosódico;
Coloração Gram: negativa;
Culturas: pendente.
Conclusão e diagnóstico final:
A análise do líquido sinovial do nosso paciente confirmou a presença de um aspirado inflamatório com cristais de urato monosódico intracelular, achado consistente com o diagnóstico de GOTA.
Pergunta do Residente: Mas não há nenhuma possibilidade de que o paciente tenha cristais intracelulares e uma Artrite Séptica concomitante?
Resposta do Dr. Bongartz: De fato, a presença de cristais não exclui por completo um processo infeccioso concomitante – esse achado só sugere que isso seja menos provável. Existem alguns casos raros na literatura de sobreposição entre uma artrite cristalina e séptica. Infelizmente, a coloração de Gram possui uma sensibilidade muito baixa e o resultado da cultura não ficam disponíveis de imediato.
Portanto, requer-se um nível elevado de suspeição em casos onde o perfil de risco geral e a apresentação clínica indicam um risco elevado para Artrite Séptica, apesar da detecção de cristais no líquido sinovial. Por exemplo, um paciente que nunca teve crises de gota e agora se apresenta com uma artrite inflamatória no joelho (50.000 células/mcl no líquido sinovial), 5 dias após realizar uma drenagem de um abcesso dentário, deve ser tratado como um caso de Artrite Séptica mesmo que os cristais apareçam nos resultados da artrocentese.
Tratamento
Foi dado ao paciente prednisona 30 mg VO até que os sintomas fossem resolvidos, seguido de 20 mg 1x ao dia por 2 dias e mais 10 mg 1x ao dia por 2 dias. Ele recebeu alta para casa e lhe foi recomendado que marcasse uma consulta de seguimento com o seu médico de família para discutir a descontinuação da Hidroclorotiazida, o ajuste da medicação para a pressão arterial e um plano de longo prazo para o manejo e prevenção da recorrência de Gota.
Pergunta do Residente: Por que você escolheu Prednisona ao invés de outras opções como Colchicina ou algum AINE? E o Alopurinol?
Resposta do Dr. Bongartz: A chave para intervenção terapêutica nas crises de gota é o controle da inflamação. Terapias que baixam o ácido úrico sérico não funcionam em um contexto agudo e provavelmente resultariam em piora da reação inflamatória devido à deposição dos cristais. Entretanto, caso o paciente esteja sob uso de terapia hipouricemiante, não devemos modificá-la.
3 agentes que podem ser utilizados na sala de Emergência para impedir a inflamação induzida por cristais:
- Anti-Inflamatórios Não Esteróides (AINEs);
- Colchicina;
- Prednisona.
Visto que o início de ação e a melhora relativa nos escores de dor são bastante similares entre esses agentes, a seleção vai depender mais da presença de comorbidades e possíveis interações medicamentosas. Além disso, caso o paciente tenha tido crises de gota prévia, é razoável que se utilize a mesma medicação que foi efetiva e tolerada no passado – a não ser que novas comorbidades, como disfunção renal ou outras interações medicamentosas, impeçam seu uso.
- AINEs: Eu uso regimes de Indometacina 50 mg 3x por dia ou Naproxeno 500 mg 2x por dia até que o paciente fique assintomático por 1 a 2 dias. Vários outros AINEs têm sido usados em ensaios clínicos e têm se mostrado efetivos. Em idosos, eu normalmente evito o uso de AINEs devido as comorbidades comuns como Insuficiência Cardíaca e Insuficiência Renal.
- Situações que os AINEs devem ser evitados: insuficiência renal, história de úlcera gastroduodenal, estar anticoagulado e alergia a AINEs.
- Colchicina: o antigo regime com altas doses tem sido trocado por um regime com baixas doses e melhor tolerabilidade, que é tão efetivo quanto: o paciente deve tomar 1.2 mg (2 cápsulas) de Colchicina via oral, seguido de 0.6 mg uma hora depois e continuar o tratamento com 0.6 mg 2x ao dia até 2 dias após a resolução do ataque.
- Situações que a Colchicina deve ser evitada: insuficiência renal grave (TFG < 30ml/min), insuficiência hepática grave, uso concomitante de medicações que inibem fortemente a enzima CYP3A4 do sistema P450 ou a P-glicoproteína, proteína que induz resistência a múltiplas drogas (exemplos: Cetoconazol, antirretrovirais, claritromicina, etc.).
- Glicocorticoides Orais: esteroides são frequentemente a escolha preferida em pacientes com várias comorbidades, visto que eles podem ser seguramente dados a indivíduos com doença renal avançada e possuem pouquíssimas interações com outros medicamentos. Eles tendem a ser a minha primeira escolha em pacientes idosos. Eu normalmente uso doses de 20-40 mg diários, mantendo a dose inicial até que os sintomas se resolvam. Após isso, eu adiciono mais 4 dias de tratamento, visto que parece existir um risco elevado dos ataques recidivarem quando se usa corticosteroides.
- Situações que os esteroides devem ser evitados: doenças psiquiátricas como depressão grave, mania e psicose.
No nosso paciente, a prednisona pareceu a escolha mais apropriada, levando em consideração que a baixa TFG do paciente proíbe o uso de AINEs e Colchicina.
Pergunta do Residente: Existe alguma situação que você internaria um paciente com Gota aguda?
Resposta do Dr. Bongartz: Pacientes com mono ou oligoartrite gotosa aguda podem normalmente receber alta para casa após o tratamento com anti-inflamatórios ser iniciado e a importância de um seguimento ambulatorial ser explicada aos mesmos. Entretanto, pacientes idosos podem estar significativamente incapazes e podem precisar da internação. Além disso, alguns casos de Gota oligo/poliarticular podem estar associados com a Síndrome da Resposta Inflamatória Sistémica (em inglês, SIRS – Systemic Inflammatory Response Syndrome) e sintomas constitucionais, sendo necessário internar o paciente para melhor suporte, manejo da dor e tratamento com altas doses de corticosteroides.
Referências
- Margaretten ME, Kohlwes J, Moore D, Bent S. Does this adult patient have septic arthritis? JAMA. 2007 Apr 4;297(13):1478-88.
- Zhang W, Doherty M, Pascual E, Bardin T, Barskova V, Conaghan P, Gerster J, Jacobs J, Leeb B, Lioté F, McCarthy G, Netter P, Nuki G, Perez-Ruiz F, Pignone A, Pimentão J, Punzi L, Roddy E, Uhlig T, Zimmermann-Gòrska I; EULAR Standing Committee for International Clinical Studies Including Therapeutics. EULAR evidence based recommendations for gout. Part I: Diagnosis. Report of a task force of the Standing Committee for International Clinical Studies Including Therapeutics (ESCISIT). Ann Rheum Dis. 2006 Oct;65(10):1301-11.
- Zhang W, Doherty M, Bardin T, Pascual E, Barskova V, Conaghan P, Gerster J, Jacobs J, Leeb B, Lioté F, McCarthy G, Netter P, Nuki G, Perez-Ruiz F, Pignone A, Pimentão J, Punzi L, Roddy E, Uhlig T, Zimmermann-Gòrska I; EULAR Standing Committee for International Clinical Studies Including Therapeutics. EULAR evidence based recommendations for gout. Part II: Management. Report of a task force of the EULAR Standing Committee for International Clinical Studies Including Therapeutics (ESCISIT). Ann Rheum Dis. 2006 Oct;65(10):1312-24.
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