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Caso: Uma menina de 7 anos chega ao seu departamento de emergência com queixa de palpitações. Ao exame ela aparenta estar ansiosa e implora que você não dê “aquele remédio que faz meu coração parar, como o último médico fez”. Você sabe que manobras vagais são a primeira linha de ação, mas há variação de técnicas. Como a paciente já havia tentado expirar fechando o nariz com os dedos, você se pergunta se não haveria outro método seguro para se tentar antes da medicação.

O que sabemos até agora: Taquicardia supraventricular (TSV) tem uma prevalência de 1 em 250 a 1 em 1000 em crianças e é a arritmia mais comum nessa população. 40% dos pacientes experimenta o primeiro episódio de TSV no primeiro mês de vida e mais de 50% tem seu primeiro episódio no primeiro ano de vida. Manobras vagais são ditas tratamento de primeira linha por serem não-invasivas e por poderem resolver rapidamente o episódio quando bem sucedidas. Existem muitos métodos, como massagem de seio carotídeo, reflexo de mergulho e manobra de Valsalva.

Nós já abordamos a TSV na SGEM algumas vezes. A primeira vez foi uma revisão sistemática da Cochrane feita por Smith et al. sobre a efetividade da manobra de Valsalva na reversão de TSV (SGEM#67). Apenas 1 estudo nessa revisão veio do departamento de emergência e esse reportou um índice de reversão de 19%. A segunda vez que abordamos TSV foi uma revisão crítica do estudo REVERT (SGEM#147). Foi um estudo de caso-controle randomizado usando uma manobra de Valsalva modificada para converter TSV. O resultado foi um retorno do ritmo sinusal em 1 minuto em 43% dos pacientes tratados com a Valsalva modificada contra 17% dos pacientes tratados com a Valsalva padrão. Isso dá um NNT de 4. Quatro pacientes precisaram ser tratados com a Valsalva modificada para mais de 1 paciente voltar ao ritmo sinusal em 1 minuto. Os autores do estudo sobre o qual estávamos falando hoje estavam cientes de estudos de caso de modificação da manobra de Valsalva em crianças (3-5 anos). A manobra envolve a criança fazendo parada de mão ou sendo segurada de cabeça para baixo.

PERGUNTA CLÍNICA: A posição de cabeça para baixo é uma manobra de Valsalva modificada segura e efetiva?

População: Pacientes entre 1 e 18 anos acompanhados no ambulatório de arritmologia pediátrica com TSV. TSV foi definida como uma complexa taquicardia regular, com duração de QRS <0,12s no ECG e/ou para a demonstrada sensibilidade a adenosina diagnosticada por um cardiologista pediátrico com >15 anos de experiência em manejo de arritmias.

–          Critérios de exclusão:

Idade: Maior de 18 anos ou menor de 1 ano

Instável: pacientes com hipotensão ou aqueles que necessitaram cardioversão imediata

Diagnóstico por ECG de taquicardia atrial automática, forma permanente de taquicardia juncional recíproca, fibrilação atrial e flutter.

Doenças cardíacas subjacentes

Contraindicação de manobra de Valsalva/posição de cabeça para baixo ou incapacidade de realizá-las

–          Intervenção: tratamento com posição de cabeça para baixo

Pais viraram manualmente pacientes com <30kg ou não-cooperativos com >30kg de cabeça para baixo por 30 segundos.

Pacientes cooperativos com >30kg foram solicitados a realizar parada de mão (ficarde cabeça para baixo apoiando-se nas mãos) por 30 segundos.

–          Comparação: Tratamento com manobra de Valsalva padrão

O paciente semi-reclinado assopra em uma seringa de 10ml para mover o êmbolo 15cm.

–          Desfecho:

Desfecho primário: Cardioversão da TSV

Desfecho secundário: Cardioversão “de resgate’: Se os pacientes falhassem na manobra, tentavam a técnica do outro grupo e esse índice de cardioversão era medido.

Recaída: Na primeira recaída, o paciente foi submetido à intervenção oposta, com o protocolo de trocar de técnica em caso de falha.

Conclusão do Autor: “A posição de cabeça para baixo é segura e tende a ser mais efetiva que a manobra de Valsalva padrão para tratamento de TSV ambulatorial. Médicos e pais devem estar cientes dessa eficiente, porém negligenciada manobra. ”

Checklist de qualidade para ensaios clínicos randomizados:

  1. A população do estudo incluía ou focava-se naqueles no departamento de emergência. Não
  2. Os pacientes foram randomizados adequadamente. Sim
  3. O processo de randomização foi oculto. Não há certeza considerando a informação no trabalho.
  4. Os pacientes foram analisados nos grupos nos quais foram randomizados. Sim
  5. Os pacientes do estudo foram recrutados consecutivamente (i. e. sem viés de seleção). Não
  6. Os pacientes de ambos os grupos eram similares a respeito dos fatores de prognóstico. Sim e Não
  7. Todos os participantes (pacientes, médicos, avaliadores dos resultados) desconheciam as alocações dos grupos. Não
  8. Todos os grupos foram tratados igualmente, com exceção da intervenção. Sim
  9. O acompanhamento foi completo (pelo menos 80% para ambos os grupos). Sim
  10. Todos os desfechos importantes para o paciente foram considerados. Sim
  11. O efeito do tratamento foi grande e preciso o suficiente para ser clinicamente significante. Não

Resultados chave: Houve 15 meninas e 9 meninos inscritos no estudo com uma média de idade de 7 anos. Eles tinham diferentes tipos de TSV e 8 deles estavam sob profilaxia farmacológica para TSV.

  • 16 pacientes tinham Taquicardia por Reentrada Atrioventricular
  • 4 pacientes tinham Taquicardia por Reentrada Nodal
  • Os ECG de 4 pacientes eram consistentes com ambos os tipos de TSV acima mencionados.

A manobra de Valsalva de cabeça para baixo estatisticamente não converteu mais crianças em TSV comparada à manobra de Valsalva padrão.

 

Desfecho primário: a posição de cabeça para baixo finalizou a TSV em 67% do grupo de estudo contra 33% do grupo da manobra de Valsalva padrão na primeira tentativa (p=0,1).

Desfechos secundários: Resgate, recaída e resgate de recaída

– Também não houve diferença estatística nesses desfechos e os detalhes serão colocados nas notas de apresentação.

– Resgate: A posição de cabeça para baixou finalizou a TSV como uma tentativa de resgate após uma manobra de Valsalva falha em 50% das vezes, e a manobra de Valsalva finalizou a TSV como resgate após uma posição de cabeça para baixo falha em 0% das vezes (p=0,2).

– Recaída: A posição de cabeça para baixo finalizou a TSV em 67% dos pacientes contra 42% dos controles (p=0,2).

– Resgate de recaída: A posição de cabeça para baixou finalizou a TSV como uma tentativa de resgate após uma manobra de Valsalva falha em 71% das vezes, e a manobra de Valsalva finalizou a TSV como resgate após uma posição de cabeça para baixo falha em 25% das vezes (p=0,2).

– Eventos adversos: Não houve eventos adversos registrados.

Já que essa é a sexta visita do Bob ao SGEM como cético convidado, nós teremos 6 “nerdy points” para discutir.

  1. Viés de seleção: Os autores abordaram isso, mas os pacientes foram selecionados exclusivamente de um centro de referência terciária. Os autores também afirmam que selecionaram pacientes e famílias que pareciam ser muito confiáveis. Isso torna difícil aplicar os resultados a todas as crianças que chegam a um departamento de emergência com TSV.
  2. Figura enganosa: A figura 1 mostra um fluxograma para ajudar a descrever a forma pela qual os pacientes passaram pelos métodos. Quando descreviam os pacientes no grupo de estudo para o primeiro episódio de TSV, os autores mostraram como 4 de 12 pacientes falharam na manobra de Valsalva modificada. A figura então mostra esses 4 pacientes submetidos a uma manobra de Valsalva de resgate, mas mostra como 8 dos 8 pacientes que falharam na manobra de Valsalva modificada falharam na manobra de Valsalva de resgate. Não é claro como os pacientes dobraram e esse tipo de erro infelizmente prejudica o estudo.
  3. Eventos adversos: Os autores declararam seguramente que o método é seguro mas não descreveram nenhum tipo de monitoração para eventos adversos. Não é claro se os pais receberam instruções sobre eventos adversos e a necessidade de documenta-los. O estudo também foi muito curto para afirmar segurança, já que não tinha poder suficiente para investigar esse desfecho. Seria mais preciso afirmar que não houve eventos adversos. Foi isso que eles disseram na seção de resultados do trabalho.
  4. Tamanho do estudo: Esse foi um estudo relativamente pequeno, com apenas 24 pacientes. Ele deveria ser replicado em maior escala e preferencialmente multicêntrico.
  5. Tendência: Eles relatam uma tendência de maior efetividade da versão modificada da manobra de Valsalva na posição de cabeça para baixo comparada à manobra de Valsalva padrão. O que isso significa é que a intervenção não foi estatisticamente significativa.
  6. Valores P: Ioannidis publicou um trabalho sugerindo que mudemos o limiar para valores p para 0,005 (JAMA 2018). Ele é o mesmo autor que escreveu um trabalho chamado “Por que a maioria dos achados de pesquisas publicadas são falsos” (PLoS 2005). Isso deu o que falar no Twitter sobre o mal-entendido e o mau uso dos valores p. Esse estudo baseou-se em valores p para interpretar os dados. Valores p não fornecem informação no tamanho efetivo, precisão ou significância clínica de um resultado. Precisamos deixar de interpretar qualquer coisa <0,05 como “significativo” e qualquer coisa >0,05 como “não-significativo”. Esse é um tópico muito maior e eu vou colocar alguns links nas notas de apresentação para entender melhor esse problema.

– S. Greenland et al. Testes Estatísticos, valores p, intervalos de confiança e poder: um guia às más interpretações.  Eur J Epidemiol 2016 

– Carta ao Editor: Valores p são mal interpretados, mas não confundem. J Clin Epi 2011

Comentário na conclusão do autor comparada à conclusão do SGEM: Nós discordamos das conclusões dos autores. Em parte porque eles reivindicam segurança mas não delinearam o estudo para segurança ou explicam adequadamente como eventos adversos foram monitorados. Adicionalmente, nós não acreditamos que médicos e pais devem ser informados de que essa manobra é efetiva até que isso seja demonstrado em um estudo de alta qualidade.

Moral da História: A manobra de cabeça para baixo existe, mas mais pesquisas são necessárias para determinar se esta tem eficácia em crianças com TSV.

Solução do caso: Você tenta realizar com a paciente a manobra vagal padrão, que falha. Então a paciente é submetida à cardioversão química com adenosina com sucesso.

Aplicação Clínica: Não há aplicação clínica para a manobra modificada de Valsalva de cabeça para baixo a não ser que pesquisas futuras demonstrem sua segurança e eficácia.

O que digo para a minha paciente? Você informa a família de que a técnica de cabeça para baixo ainda está sob investigação e não demonstrou ser melhor que o tratamento usual. De qualquer forma, eles sempre podem discutir sobre a manobra de Valsalva modificada com seu cardiologista na próxima consulta.

Lembre-se de ser cético sobre tudo o que lê, mesmo se tiver ouvido no Guia Cético para Medicina de Emergência.

Texto Original: SGEM

Tradução: Larissa Portugal

Autores: Ken Milne, Dr. Robert Edmonds

Revisado por: Arthur Martins

Referências:

  1. J.C.Salerno,M.M.Garrison,C.Larison,S.P.Seslar,Case fatality in children with supraventricular tachycardia in the United States, Pacing Clin. Electrophysiol. 34 (7) (2011) 832–836
  2. J. Brugada et al. Pharmacological and non-pharmacological therapy for arrhythmias in the pediatric population: EHRA and AEPC-Arrhythmia Working Group joint consensus statement. EP Europace, Volume 15, Issue 9, 1 September 2013, Pages 1337–1382
  3. I. Constantiniu, Unusual treatment of paroxysmal tachycardia, Br. Med. J. 1 (5744) (1971) 347.
  4. Y.P. Tai, C.B. Colaco, Upside-down position for paroxysmal supraventricular tachycardia, Lancet 2 (8258) (1981) 1289.
  5. M. Hare, S. Ramlakhan, Handstands: a treatment for supraventricular tachycardia? Arch. Dis. Child. 100 (1) (2015) 54–55